Sunday, February 04, 2007

De bagagens (d)e leituras

Esta semana li que na China, durante a dinastia Song, as pedras eram bastante apreciadas. Quem encontrasse um exemplar curioso poderia escrever ali seu nome e apresentá-lo como obra de arte. Também diziam que ninguém encontra uma pedra por acaso. Acho que é verdade. Muitas vezes, elas nos encontram.
A melhor coisa a respeito de Macau é que aqui é possível fazer tudo caminhando. Ir a todos os lugares. Por isso, tenho exercitado bastante o meu meio de locomoção favorito. Tênis nos pés, cabeça ereta. É possível se descobrir muitas coisas. E por isso a descoberta que fiz sobre a história das pedras na China me foi de grande valia. Passei a observá-las com mais atenção. Isto porque, em especial, nestas minhas andanças, acabo sempre tropeçando em alguma. O que não me acontecia com freqüência. Não que isso esteja relacionado às práticas dinásticas dos Song. Mas percebi que, a cada tropeço, eu parava. A linha do pensamento se rompia. Em alguns milésimos de segundo eu olhava para trás e relembrava onde eu estava e para onde ia. Via muitas pessoas a minha volta e, por isso, em cada tropeço há também uma rápida lembrança de não estar sozinho. Num milésimo de segundo. Mas passo pelas pedras incólume. Daí, então, penso que, de certa maneira, as pedras devem nos escolher. De alguma forma...

Li nesta semana também que há cerca de 500 mil habitantes em Macau. Todo o final de semana, mais 200 mil chegam à cidade para turismo. Não havia percebido ainda o peso desses números até hoje. Acordei cedo, preparei meu confortável tênis, meu livro sobre Macau sob o braço, um outro de poesia na bolsa – para eventuais e estratégicas paradas para descanso – e saí pela cidade. Eu e todos os 200 mil outros turistas. Encontrei a todos no caminho. Havia preparado um itinerário mais ou menos seguro. Tinha ido por aquelas ruas algumas outras vezes, e a chance de me perder seria menor. Lá estou eu, tênis e livros, rumando em direção ao Largo do Senado (o centro histórico português), quando vejo que a rua está bloqueada. Dezenas de policiais apitavam e indicavam uma direção – que definitivamente não era uma rota segura para mim. Parei por alguns instantes e vi o que acontecia: o ministro de Portugal está na cidade. Naqueles segundos, 500 anos de história se passaram pela minha cabeça, e tive de respirar fundo. Depois de tanto tempo, lá estava um brasileiro tendo que mudar novamente seu rumo natural por caprichos portugueses. Detestei o fato de ter que ir por onde todo mundo ia e não pelo meu caminho – ainda mais por causa de um português. No trajeto novo, nada especial. Algumas poucas pedras – mas elas me evitaram, todas, e eu fingi que não as vi. O interessante é que já havia visto algumas vezes pessoas nas esquinas queimando papéis em grande tonéis vermelhos. Descobri então que aqueles papéis eram todos relacionados a dinheiro – envelopes de banco, notas falsificadas, documentos, recibos. A queima desses materiais é feita como reverencia aos antepassados e uma prova de distanciamento no mundo material. Interessante.
Depois de retornar às ruas previstas, saí à procura da Casa do Mandarim. Construída em 1881, foi a residência do escritor Zheng Guanying, e representa uma mistura de elementos ocidentais e orientais. Caminhei por 40 minutos, alternando ruelas, e não consegui encontrar a tal casa. Suponho que seja só ficção mesmo.
Aproveitei a oportunidade e visitei a Rua da Felicidade. É uma ruazinha cheia de lojas de doces, confeitarias. Mas, há muito tempo, era onde ficavam os bordéis. Esta é a razão do nome. Apesar de não mais operar ali nenhuma casa dessas, acho que o nome ainda é apropriado... (Isto me fez lembrar que ontem, no jantar na casa do dono do jornal, encontrei um pequeno livro sobre a história da prostituição. Esta será a leitura da próxima semana. Os detalhes seguem abaixo).
Terminada a Rua da Felicidade e vencida a tentação (nem bala, sequer), fui às Ruínas de São Paulo. Confesso que pensei que seria maior, mas é, na verdade, somente a fachada do que foi, uma vez, uma igreja, construída entre 1602-1640, e destruída por um incêndio em 1835. As Ruínas de São Paulo eram, na verdade, um complexo construído pelos jesuítas e constituído pela igreja e pelo Colégio São Paulo. Vale a pena subir as escadarias e ver a cidade de cima.
Mas melhor ainda é a vista que se tem do Forte do Monte. Esta é uma construção também jesuítica e serviu para defender os portugueses das investidas holandesas. Construído entre 1617 e 1626 e com uma área de 10 mil m², o Forte foi recuperado no final do século XIX e completamente reformado nas décadas seguintes. De Forte mesmo há pouco. Alguns poucos canhões, a estrutura. No lugar das casas militares há um belo jardim, onde fica o Museu de Macau. Este foi auge do dia.
O Museu de Macau é enorme. Nele há exemplares da cultura portuguesa e chinesa. Réplicas de igrejas e artefatos católicos se fundem com a cultura budista – ainda muito preservada por aqui -, numa massa esquizofrênica a qual chamamos de Macau. Lembrou-me muito o museu da Puc, pois é todo interativo e, ao contrário dos museus de Pequim, há explicações lógicas sobre o que vemos e em várias línguas. Passei horas lá dentro, lendo tudo, anotando tudo, absorvendo. Ali dentro foi reconstruído o centro português de Macau, pelo qual podemos passar enquanto acompanhamos a história. Mas o especial mesmo é que, devido ao Ano Novo Chinês – o maior evento no país, que será comemorado no próximo dia 18 -, há uma grande exposição de gravuras de Yangliuqing, que se chamam Nian-hua. São coloridas representações do alegre do dia-a-dia dos chineses, crianças de rosto bastante arredondado (que representa felicidade e prosperidade), mulheres, ópera. Estas figuras as da dinastia Song, mas se desenvolveram muito durante as dinastias Ming e Qing. Estas gravuras vieram do norte da China, de uma província chamada Tianjin, e Yangliuqing é um dos maiores representantes desta arte.

É incrível como minha sorte sempre me levou a me cercar das pessoas mais fascinantes. Sexta-feira fui convidada a participar de um jantar do jornal na casa de Carlos, o dono do jornal. Mas primeiro é preciso falar das pessoas. Trabalham no jornal três jornalistas portugueses e uma chinesa. É um jornal pequeno, mas cheio de detalhes. Sofia é uma aquariana muito ligada em política. Carlos é um virginiano todo cultural. Algumas conversas interessantes. João, o diretor, é quieto, reservado, casado com uma brasileira. Carlos, o dono do jornal, é um escorpiano chique de Lisboa. Estudou antropologia e todo o resto. A casa dele é tomada de livros e filmes. Mas tomada mesmo! Típico apartamento de um bachelor intelectual. O brinde foi ddicado a mim, mas senti que deveria ser ao contrário. Lá estava eu, humilde jovem brasileira, cercada do melhor queijo, do melhor vinho e da melhor conversa. Carlos, o bachelor, sabe tudo de tudo. Incrível. Como semana que vem ele vai embora para Portugal, é na casa dele que vou morar. E não poderia estar mais feliz. Quando ele me ofereceu o apartamento, pediu que eu fosse lá um dia para que me explicasse as coisas. Pensei que ele falava de aparelhos, interruptores e máquina de lavar. Não. Ele me mostrou onde eu poderia encontrar os livros e os filmes. Tudo brilhantemente organizado.
Nas paredes vermelhas há muitas obras de arte e quadros de filmes famosos. Outros, desconhecidos para os não-intelectuais como ele. Luzes secundárias, taças especiais. No meio da noite percebi que a conversa variava sutilmente enquanto bebíamos um dos 10 melhores vinhos do mundo – que custa algumas centenas de Euros. Demorou um tempo para assimilar que aquela seria minha casa. Algo me diz que vou passar algumas boas horas acordada tentando entender a lógica das coisas.
Este Carlos me deu também alguns vários livros sobre a China, que vão contribuir e muito com minhas expectativas – e também com o meu já existente excesso de bagagem.
“Forgive father for I have sinned”: na volta para casa, encontrei-me numa ruela – que não estava no meu plano – onde havia um sebo. Comprei mais algumas coisas. Nas bagagens eu penso depois. O importante, nessas alturas, é a leitura.

1 comment:

pati cuozzo said...

hoje consegui ler tudo...
olhos brilhando, coração saltitante...sorrisos e as vezes respiração ofegante...nó na garganta...mas nada disso se compara a alegria de saber que estas bem, dos contos e causos...peace, love, nasa, freedommm never more!!! saudades e carinhosss...