Monday, February 12, 2007

De lusofagias

Quantos anos tem a chuva?


Imagino um professor de Português para quem na linguagem existe tudo, desde que a gente saiba ler, mas sobretudo existe tudo o que está fora da linguagem. Imagino um professor de Português que vem dizer que Deus está no pormenor – e que está também na palavra mais discreta e invisível.
Ele pegava num verso e desdobrava-o como fruto. Dizia, citando Herberto Helder: “Entrou na minha vida uma loucura branca”. Vamo-nos sentar em volta deste verso. E sentavam-se. “Alguém parte uma laranja em silêncio/ à entrada de noites fabulosas”. E avançavam pela noite das palavras.
Alguma coisa “entrou”. Não fui eu que enlouqueci, não fui eu que quis enlouquecer (é possível querer enlouquecer? Se fizeres muita força, és capaz? Ou já estavas a enlouquecer – devagarinho – quando disseste que querias enlouquecer?). Foi a minha vida que se transformou num lugar (vou contar um segredo sobre Herberto Helder: tudo nas suas palavras se converte em um lugar), e alguém entrou nele. A loucura – reparem – é como se fosse uma pessoa: bate à porta, entra? Quais são os seres que podem entrar na minha vida? Um gato, a noite, a doença, a morte – tu?
Aquilo foi loucura. Mas o que é a loucura? Abre-se à nossa frente um espaço de dois lugares simétricos: à direita, a razão, à esquerda, a loucura. Ou seria melhor imaginarmos o contrário? Haverá alguma cumplicidade secreta entre o lado esquerdo e a loucura? E ainda: serão mesmo dois lugares inteiramente simétricos? Não será que um parece fechado e arrumado, o lugar da razão, e o outro parece ser o que resta, o avesso do primeiro: a loucura como o outro lado da razão. Será que podíamos viver num mundo em que só houvesse o lado direito das coisas? Que traz ao mundo a loucura? E o mal? E a noite? E a morte? E tu?
“Entrou”, diz o poeta. Mas foi de uma só vez? Ou este “entrou” significa um gerúndio: “está entrando”. Um gato entra no meu quarto. Mas a loucura só pode estar entrando. Insto é, continuando a entrar. Até onde?
E por que “branca”? A loucura poderia ser “negra”. Deveria? Poderia ser cor-de-rosa? E amarela? Haverá uma loucura amarela? Que significam as cores? Como é que tu sentes as cores? Branco e negro são ainda cores? Uma loucura branca será aquela que vai tão longe no ver que acaba por cegar num excesso de luz? Podemos olhar o sol de frente? Podemos olhar a loucura de frente? Haverá aqueles que amam limites e aqueles que preferem habitar os patamares intermediários?
E depois o poeta abre a janela das perguntas: elas vêm na brancura do real. “Quantos anos tem a chuva, em que mudez nasce o álamo, com que passos chega a noite sobre o odor da salsa viva?”
Foi uma aula de Português: “O tempo leitor de um. Autor./ Ou um livro e um Deus com ondas de um mar/ mais pacientes./ Ondas do que um leitor devagar”.

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